domingo, 31 de agosto de 2008

Argumento


Ela toca guitarra. Como se já não bastasse todo o resto, ela ainda toca guitarra. E muito bem. Sem boça, sem a máscara pedante de artista. Mãe dos acordes, domina o som. E o céu se enche de notas musicais paridas dos dedos seus. Ela tem uma marra feminina que encanta e atrai. Ela sai sem dizer se volta, invoca a saudade minha. Ela deu novo significado pro vinho, pro luau, pra farra. E quando me perguntam o porquê de tanto fascínio, eu só sussurro baixinho: é que ela toca guitarra.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Éramos sete...


A gente costumava se reunir todas as tardes na casa do Alan. Era um hábito tão constante que dava pra chamar de ritual mesmo. Ao todo, éramos sete. E quando juntos, cada hora passava a ter 120 minutos. Cada um com um jeito peculiar de ser e agir, sem nunca invadir o território ou ponto de vista dos outros seis. Não me perguntem como, mas a gente simplesmente não brigava NUNCA. Quatro garotões que achavam que podiam mudar o mundo... e três mocinhas que tinham certeza disso. Éramos inseparáveis. Durante dois anos, ninguém de fora conseguia entender como funcionava essa história. Quem ficava com quem? Quem sobrava? E se não sobrava, como é que faziam?!? Povinho besta. Claro que vez ou outra rolavam uns beijinhos (e até algo mais, óbvio), mas em essência não passávamos todos de amigos. Não havia malícia, somente uma cumplicidade ímpar. E a intimidade era tanta que, juntos, podíamos fazer qualquer coisa que desse na telha: filosofar, rir, chorar, falar de sexo, afogar as mágoas, queixar-se da vida (acreditando, ingenuamente, que tínhamos do que reclamar naquela época. Éramos totalmente felizes e não sabíamos). Dois anos. Então, o tempo violentamente bate à nossa porta, sem pedir licença e trazendo nossas passagens para a vida adulta. Vestibular. Faculdade. Trampo. Amores. Namoros. Noivados. E a gente foi ficando "sérios e ocupados" demais para retomar o ritual das tardes adolescentes. Sinto muita, muita falta daquilo tudo... e o que me conforta é saber que todos eles também.

domingo, 24 de agosto de 2008

(con)fabulando


Às vezes penso que sou um Lobo Mau sabidão, com a lábia ainda mais afiada que as garras e dentes. É numa dessas potências às pressas - ou eternas prepotências - que pago o pato. Ou melhor, pago tudo, me iludo... e só no fim da noite é que você vem dizer que hoje não é dia de cardápio. Somente vinho ou couvert, o que houver. Tudo bem, paciência é uma coisa que preciso exercitar. Tô no bosque à tua busca.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Sinto, tento, tinto


Veja. O desejo, o corpo, o subtexto. Abra. O peito, o zíper, a caixa dos segredos. Cheire. Os poros, os pêlos, os panos. Sinta. As certezas, as proezas, os enganos. Prove. O gosto, o fato, o sumo. Sorva. O momento, o veneno, a cura. Lamba. O lábio, a língua, a fome. Derrame. A graça, o gozo, a lágrima. Tonteie. Meu jeito, meus feitos, meu nome. Sorria. Pega lá o saca-rolhas, realize a fantasia.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

(inter)Urbanos


Shhhh... não fala nada, hoje quem fala sou eu. Apenas escuta calada o que quero e vou dizer. Hoje encontrei uma foto guardada (que nem pensava ainda ter) e me senti compelido a ligar pra desengasgar uma porrada de coisas. Não vou perguntar como está, com quem está ou o que anda fazendo. O seu "daqui em diante" não me importa. Feche a porta do quarto e não interrompa a conversa. É o passado, passado a limpo. Assim, com a garganta seca, o peito molhado e a urgência de cortar as pontas soltas. Não liguei pra lavar roupa suja, liguei pra limpar a alma. E é com calma que digo: mais que um amante, você perdeu um amigo-irmão... alguém que realmente te quer bem. Você maculou uma história que tinha tanto futuro, derrubou um muro que não volta a erguer. Você matou o meu carinho. E foi por isso que liguei: pra dizer que não te quero em meu caminho e é sozinho que hoje vou amar você.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Sem saída


E se a gente fica a buscar sentido, se sente é cada vez mais perdido: labirinto de mim. Nem sei se quero a saída, a ida e a volta, a porta trancada pelo lado de fora. Nem sei se quero ir embora, não sei se pretendo ficar. As cartas que tenho na manga são poucas, são polpa e fiapo. Me espremem, bagaço de mim. E sigo a buscar sentido nas minhas escolhas, derramo nas folhas interrogações e enterro as ações cada vez mais fundo. Bem lá... no meu labirinto.

domingo, 17 de agosto de 2008

Bastidores


Me divirto assistindo os dois em busca da definição exata, concreta, pro que estão vivendo. Querem um nome pro que ainda não têm. Cobram quando o outro não vem, não diz, não faz. Queixam-se quando o outro faz, diz e vai. Estranham a paz do começo e começam a exigir. São tão maduros, sólidos em seus ideais, enormes em seus talentos... que até me espanto ao ver que, inocentes, ignoram o óbvio: quando o assunto é sentimento, fodam-se as convenções. De nada adiantam argumentos concisos. É preciso muito mais, baixar a guarda, correr o risco. Voyeur: fico eu nos bastidores vendo doer as dores de amores de um casal que aprende a amar.

sábado, 16 de agosto de 2008

E lá se vai...


E foi vendo-a fechar a penúltima bagagem que eu não agüentei e derramei a primeira lágrima. Tentei a todo custo me fazer de forte, fui à casa dela rezando pela sorte de não fraquejar. Comprei presente, evitei o olhar direto e mantive o sorriso no rosto. Mudei de assunto, comentei a olimpíada. Piada. Logo eu, que tinha de dar o exemplo em não fazer disso uma novela. Mas, porra, logo ela partindo? E eu, no meu egoísmo, sentindo que havia muito ainda a ser vivido por aqui. Dividido entre o saber deixar e o querer barrar. É barra, constatei. E ajudei a fechar o zíper da última mala.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Entre a unha e a carne


Sabe aqueles amigos que, de tão íntimos, dividem tudo? A calça jeans, a prancha de surf, as confidências. Amigos em essência e necessidade. Aqueles que conseguem ler qualquer parágrafo da mente do outro e que por pouco não são um só. Os chamados unha-e-carne, Batman-e-Robin. Em meio a essa irmandade tão bonita, tão permitida de carinhos e atenções, surge uma convidada especial que desce da árvore carregando a sua maçã. E mostra pros garotos que a vida pode ser mais profunda, como um talho rápido de navalha. Funda e quente. Experimentem, ela diz. E caíram na tentação (ou na bebedeira) de dividir o mesmo beijo: passagem instantânea pra desejos proibidos, esquecidos até então na gaveta do "não posso". E realmente não puderam. Não puderam agüentar a barra do dia seguinte. Não quiseram encarar os rostos, os gostos, os fatos. Já não dava pra fingir que nada havia acontecido. As roupas espalhadas pelo chão, misturadas como a imitar seus donos na cama ao lado. Mas antes que qualquer um dissesse alguma coisa, Pandora os deixa a sós, contente com os cacos da caixa recém-partida. Os dois amigos, mais íntimos que nunca, rejeitaram aquela idéia. E nunca mais a unha viu a carne, o Batman viu o Robin.

domingo, 10 de agosto de 2008

Breu


Eu só peço que apague a luz e nada fale. Cálice. Entorne a seriedade deste momento tão meu, transborde respeito. Eu quero o silêncio escuro, uma pausa pro futuro que bate lá fora. Hoje eu quero o breu, a penumbra. Minha luz afunda o peito e pede recolhimento. Não sussurre piedade ou compreensão. Hoje a canção é solitária e o meu casulo muito mais denso. Não peça explicações que não tenho, não sei. Apenas bata a porta ao sair e finja que não se importa. Amasse o dia de hoje e esqueça. Amanhã, quem sabe, você já me reconheça.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Aos nove


Ele era impossível. Sim, daqueles que se imortalizam pelas diabruras. Era o sobrinho temido pelas tias: quando ele chegava, sai de baixo: melhor alterar a mobília, guardar o que de frágil havia. Era um irmão sádico: fazia venenos (por sorte, falhavam - não dominava a química da maldade), terror psicológico e armadilhas constantes. Quebrava até o inquebrável. Era tão arteiro que os indícios levavam a ele mesmo quando sua culpa não estava no cartório. Tinha uma energia que mal combinava com a magreza e o pouco tamanho. Era precoce e criativo, o holofote da família. E mesmo tudo isso sendo, fazendo e acontecendo, marcava pela alegria... uma simpatia latente escancarada no rosto. Era feliz. Muito abençoado, e nem sabia. Aí, cresceu. Tudo bem: mais em idade que em altura, convenhamos. E revendo sua festa de nove anos em uma fita meio gasta, gosta do que vê e não entende como é que hoje em dia é sorrindo que os pais, irmãs, tios e tias contam aos demais suas peripécias passadas. Ele era impossível... mas, impossível mesmo era não dar o braço a torcer e ver que esse passado registrado em poucas cores num VHS embolorado fazem desse menino o homem que hoje ele é. Um pequeno homem que muitos dizem ser grande. Ele nunca se achou assim, mas ao rever o sorriso de nove anos aprendeu, enfim, o significado de grandeza.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Fatias de mim


Me deixa boquiaberto fazendo arte com as gavetas, abrindo pra mim as mil possibilidades. Faz trilha com o tempo, me toca o corpo inteiro, partindo minhas antigas idéias. Me faço outro com os seus insights, fico louco de pedra, batendo cabeça. Me enrolo em tuas fitas, fico vermelho tal elas. Te busco atrás das cortinas amantes e já me sei tão certo diferente de antes. Pulsação acelerada, olhos abertos em transe. Suspiro eloqüente a cada hora que passas pela gente com a metalinguagem mais impactante. É tudo ciclone visual rompendo com meus limites. Te vejo perder a cabeça... os pés, as mãos... e nunca a beleza. Como é linda a criação e as mil possíveis dobraduras que tuas mãos constroem no ar. Hipnose pura, aposto. E gosto. E no seu oratório, Aurélia, me vejo ainda casulo de tudo o que um dia eu desejo borboletar. Me chama pra voar contigo, vai. E mais, e mais, e mais.

#PS: Ainda bombardeado pelo espetáculo L'oratorio D'Aurélia, dirigido pela filha de Charles Chaplin e interpretado pela neta, visto no último domingo. Nunca vi algo tão mágico, tão lindo.